sábado, 5 de outubro de 2013

Sal

Imagem de Mariana Britto
“Escrever é uma espécie de poder sobrenatural. Como ver os mortos ou fazer levitar os móveis da sala”.

[...] Flora arrancara as páginas dos cadernos uma a uma, tinha passado o dia inteiro no quarto, arrancando páginas. Era mais um ato simbólico, mas Flora era uma simbolista... E o farol lá, cinco segundos, depois dois, e oito e vinte, e então um longo apagão e foi quando Flora tropeçou numa pedra e caiu, e das suas mãos as páginas soltas saltaram para o penhasco, batendo asas na noite, embaladas pelo vento frio como fantasmas de um outro tempo, como fantasmas de uma vida que ela, Flora, achava ter perdido para sempre. Dez segundos, dois, dois, cinco, nove segundos, um apagão, seis segundos, e então algum ritmo - dois, dois, dois, dois - e Flora ergueu-se, o joelho ferido pelos seixos. Flora viu as folhas voando na noite, havia lua, e amaldiçoou-as uma por uma. Acho que ela amaldiçoou tudo, o farol, a ilha, a casa, tudo. Ela gritou com o vento. Ofendeu os Deuses. Renegou a família. Assim como as folhas, as suas palavras voaram na noite. [...] 

Sal
Leticia Wierzchowski
Editora Intrínseca

Uma família fadada aos grandes revezes da vida e um farol que parece ter enlouquecido, decidindo iluminar e apagar ao seu próprio bel prazer.




Alguns integrantes da família Godoy haviam migrado a mais de duzentos anos da Espanha, vindo aportar na ilha de La Duiva. Ali em meio aquele lugar de ventos constantes e isolamento, Cecília conheceu Ivan Godoy, seu grande e único amor. Sua sogra não fazia questão nenhuma do relacionamento, mas a vida segue caminhos naturais e dois belos jovens juntos numa ilha, não permaneceriam muito tempo isolados. A vida parecia pulsar mais forte cada vez que Cecília pousava os seus, nos olhos verdes de Ivan. Ele era um rapaz compenetrado e prático como o pai, mas não lhe passava desapercebida a beleza de Cecília, que a cada dia se acentuava como um jardim banhado de sol. Eles se amavam e deste amor vieram seis filhos. Lucas, Julieta, Orfeu, Flora, Eva e Tiberius. Cada qual um ser único, mas ao mesmo tempo todos parte deste mesmo laço que os unia, a família. Aquela ilha era o mundo deles, mas cada um vivia seu próprio mundo e à medida que os anos foram se passando, cada vez mais as diferenças entre eles foram acentuando-se, até levarem cada um para seu próprio destino. Em certo ponto, Cecília se vê viúva e solitária na ilha. Tudo mudara muito e seus filhos não puderam ser imunes às mudanças. Flora havia escrito um livro e este havia agido como o canto das sereias, que atrai os homens e os consome pelo que lhes resta de vida. Július Templeman, um professor de literatura, tinha sido sempre muito solitário e sua vida se resumia a estudar e dar aulas na cinzenta e chuvosa cidade de Cambridge, onde a literatura o ocupava quase em tempo integral. Ele e o tio, um livreiro que morava em Oedivetnom, próximo de La Duiva, se correspondiam com certa frequência e o amor pela literatura era um tema recorrente. Um dia seu tio lhe enviou um manuscrito, acompanhado de um bilhete onde informava que havia sido escrito por uma jovem que vivia nas redondezas de Oedivetnom, e que nunca havia escrito nada. A história lhe parecia fresca como uma maça. Julius deu início à leitura e somente quando absorveu suas últimas linhas, conseguiu deixa-lo de lado. Aquilo tudo pulsava dentro dele, a isca estava lançada e o marinheiro seguiria o canto da sereia. Quando Flora escrevera seu livro, jamais imaginaria as consequências de sua inspiração. Quando Julius chegou na praia de La Duiva, suas roupas e visual acadêmicos contrastavam de forma flagrante com todo aquele sol, areia e mar a sua volta. Os acontecimentos que se sucederam à sua chegada, mudaram totalmente o rumo de sua vida e a de cada integrante da família, revelando segredos e desejos que eram mantidos calados a muito tempo. Cecília decide tecer a vida numa tapeçaria, o pequeno mundo de sua família, elegendo uma cor para cada personagem. Verde para Ivan, seu marido; Sépia para Julieta, sua filha e assim por diante. Sob seus cuidados, as linhas iam se enredando de forma ornamental, contando a história intrincada de todos eles, ganhando vida e cor a cada carreira. Era como um livro escrito de cores e sentimentos, onde alguns personagens jamais voltariam a se reencontrar. Flora havia descoberto o amor e a decepção rápido demais, o que a levara além de onde poderia suportar. Orfeu, o querido e belo Orfeu, este finalmente recebera do mar o seu grande amor e nada mais poderia importar naquele momento, a não ser vivê-lo. Julieta menina frágil e doente, acabara por repousar, trazendo a tristeza pela primeira vez aquela família. Ivan foi o próximo, e o coração de mãe e mulher de Cecília parecia que não iria suportar tamanha dor em alguns momentos. Mas ela precisava seguir adiante e aguardar que a próxima maré lhe trouxesse de volta seus amados filhos e quem sabe uma nova esperança.


[...]As palavras são como pássaros que voam, desobedientes, enquanto a linha é tão sensata, por isso eu teço[...]

Uma bela obra, escrita de forma envolvente e poética. A história de uma família, onde cada personagem seguiu seu próprio destino, mesmo que este tenha levado cada um por uma jornada tortuosa. É interessante a forma como a escritora desenvolveu o livro, mostrando os pontos de vista de cada personagem separadamente e identificando-os pela cor da tapeçaria da matriarca. De início pensei que isto me distanciaria da leitura, que talvez não me deixasse envolver tão plenamente com a história em si, mas pelo contrário funcionou bem. Isto me levou a entender melhor os sentimentos e as motivações de cada personagem.

Abraço
Jade


Imagem de Mariana Britto
Sigo andando a passos largos...
...sem rumo e sem destino, apenas observando o que se passa e o que passou, o conhecimento traz prazer mas também traz dor.
Jade

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