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Imagem de Mariana Britto |
“Escrever
é uma espécie de poder sobrenatural. Como ver os mortos ou fazer levitar os
móveis da sala”.
[...] Flora
arrancara as páginas dos cadernos uma a uma, tinha passado o dia inteiro no
quarto, arrancando páginas. Era mais um ato simbólico, mas Flora era uma
simbolista... E o farol lá, cinco segundos, depois dois, e oito e vinte, e
então um longo apagão e foi quando Flora tropeçou numa pedra e caiu, e das suas
mãos as páginas soltas saltaram para o penhasco, batendo asas na noite,
embaladas pelo vento frio como fantasmas de um outro tempo, como fantasmas de
uma vida que ela, Flora, achava ter perdido para sempre. Dez segundos, dois,
dois, cinco, nove segundos, um apagão, seis segundos, e então algum ritmo -
dois, dois, dois, dois - e Flora ergueu-se, o joelho ferido pelos seixos. Flora
viu as folhas voando na noite, havia lua, e amaldiçoou-as uma por uma. Acho que
ela amaldiçoou tudo, o farol, a ilha, a casa, tudo. Ela gritou com o vento.
Ofendeu os Deuses. Renegou a família. Assim como as folhas, as suas palavras
voaram na noite. [...]
Sal
Leticia Wierzchowski
Editora Intrínseca
Uma família fadada aos grandes revezes da
vida e um farol que parece ter enlouquecido, decidindo iluminar e apagar ao seu
próprio bel prazer.
Alguns integrantes da família Godoy haviam
migrado a mais de duzentos anos da Espanha, vindo aportar na ilha de La Duiva.
Ali em meio aquele lugar de ventos constantes e isolamento, Cecília conheceu
Ivan Godoy, seu grande e único amor. Sua sogra não fazia questão nenhuma do
relacionamento, mas a vida segue caminhos naturais e dois belos jovens juntos numa
ilha, não permaneceriam muito tempo isolados. A vida parecia pulsar mais forte cada
vez que Cecília pousava os seus, nos olhos verdes de Ivan. Ele era um rapaz
compenetrado e prático como o pai, mas não lhe passava desapercebida a beleza
de Cecília, que a cada dia se acentuava como um jardim banhado de sol. Eles se
amavam e deste amor vieram seis filhos. Lucas, Julieta, Orfeu, Flora, Eva e
Tiberius. Cada qual um ser único, mas ao mesmo tempo todos parte deste mesmo
laço que os unia, a família. Aquela ilha era o mundo deles, mas cada um vivia
seu próprio mundo e à medida que os anos foram se passando, cada vez mais as
diferenças entre eles foram acentuando-se, até levarem cada um para seu próprio
destino. Em certo ponto, Cecília se vê viúva e solitária na ilha. Tudo mudara
muito e seus filhos não puderam ser imunes às mudanças. Flora havia escrito um
livro e este havia agido como o canto das sereias, que atrai os homens e os consome
pelo que lhes resta de vida. Július Templeman, um professor de literatura,
tinha sido sempre muito solitário e sua vida se resumia a estudar e dar aulas
na cinzenta e chuvosa cidade de Cambridge, onde a literatura o ocupava quase em
tempo integral. Ele e o tio, um livreiro que morava em Oedivetnom, próximo de
La Duiva, se correspondiam com certa frequência e o amor pela literatura era um
tema recorrente. Um dia seu tio lhe enviou um manuscrito, acompanhado de um
bilhete onde informava que havia sido escrito por uma jovem que vivia nas
redondezas de Oedivetnom, e que nunca havia escrito nada. A história lhe
parecia fresca como uma maça. Julius deu início à leitura e somente quando
absorveu suas últimas linhas, conseguiu deixa-lo de lado. Aquilo tudo pulsava
dentro dele, a isca estava lançada e o marinheiro seguiria o canto da sereia.
Quando Flora escrevera seu livro, jamais imaginaria as consequências de sua
inspiração. Quando Julius chegou na praia de La Duiva, suas roupas e visual
acadêmicos contrastavam de forma flagrante com todo aquele sol, areia e mar a
sua volta. Os acontecimentos que se sucederam à sua chegada, mudaram totalmente
o rumo de sua vida e a de cada integrante da família, revelando segredos e
desejos que eram mantidos calados a muito tempo. Cecília decide tecer a vida
numa tapeçaria, o pequeno mundo de sua família, elegendo uma cor para cada
personagem. Verde para Ivan, seu marido; Sépia para Julieta, sua filha e assim
por diante. Sob seus cuidados, as linhas iam se enredando de forma ornamental,
contando a história intrincada de todos eles, ganhando vida e cor a cada
carreira. Era como um livro escrito de cores e sentimentos, onde alguns
personagens jamais voltariam a se reencontrar. Flora havia descoberto o amor e
a decepção rápido demais, o que a levara além de onde poderia suportar. Orfeu,
o querido e belo Orfeu, este finalmente recebera do mar o seu grande amor e
nada mais poderia importar naquele momento, a não ser vivê-lo. Julieta menina
frágil e doente, acabara por repousar, trazendo a tristeza pela primeira vez
aquela família. Ivan foi o próximo, e o coração de mãe e mulher de Cecília parecia
que não iria suportar tamanha dor em alguns momentos. Mas ela precisava seguir
adiante e aguardar que a próxima maré lhe trouxesse de volta seus amados filhos
e quem sabe uma nova esperança.
[...]As
palavras são como pássaros que voam, desobedientes, enquanto a linha é tão
sensata, por isso eu teço[...]
Uma bela obra, escrita de forma envolvente e poética.
A história de uma família, onde cada personagem seguiu seu próprio destino,
mesmo que este tenha levado cada um por uma jornada tortuosa. É interessante a
forma como a escritora desenvolveu o livro, mostrando os pontos de vista de cada
personagem separadamente e identificando-os pela cor da tapeçaria da matriarca.
De início pensei que isto me distanciaria da leitura, que talvez não me
deixasse envolver tão plenamente com a história em si, mas pelo contrário
funcionou bem. Isto me levou a entender melhor os sentimentos e as motivações de
cada personagem.
Jade
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